Tenho ignaros amigos que me olham com desconfiança e desdém quando lhes digo que sou aficionado da festa brava…
Bem sei que, nestes tempos de acelerada massificação e de preocupante globalização, gostar de toiros é quase uma heresia. Mas fico na minha. Gosto incondicionalmente do espectáculo taurino. Encontro grandeza na festa dos toiros. Descubro, numa tourada de praça, valores artísticos, estéticos e emocionais. Vejo arte no toureio apeado e no toureio equestre. E aprecio a coragem heroica dos forcados, aquela valentia, aquele arrojo, aquele companheirismo. E divirto-me, à brava, com a festa lúdica da tourada a corda, que é hoje, na Terceira, uma forma de tauromaquia popular única no mundo.
Vou aos toiros pela mesma razão que assisto a uma peça de teatro, a um jogo de futebol ou a um concerto musical: quero viver emoções.
Bem sei que dificilmente se poderá gostar de toiros quando não se está por dentro de uma tradição tauromáquica. Aceito os argumentos dos que não gostam do espetáculo taurino, mas peço-lhes que entendam esta forma de cultura ancestral. Ser a favor ou ser contra as touradas não são necessariamente duas posições irreconciliáveis.
Tomemos, como exemplo, o fenómeno tauromáquico terceirense, e vamos aos números: a ilha Terceira, que oferece uma média de 250 a 260 touradas à corda por ano e uma mancheia de touradas de praça, tentas e garraiadas, possui cerca de 2.500 cabeças de gado bravo e à volta de 20 ganadarias.
Desde logo há aqui uma mais-valia ambiental, pois que estas ganadarias são, de acordo com o biólogo João Pedro Barreiros, autênticas “reservas biológicas”. Ou seja, sem essas ganadarias, a Terceira não possuiria as manchas endémicas que hoje ostenta.
Representando o mitológico, o sagrado e o poder genésico, ser sacrificial (associado ao culto do Espírito Santo), o toiro, animal nobre e puro, vive no seu habitat natural, é um símbolo da conservação da natureza. E nestas áreas naturais ele é criado, livre e selvagem, sendo muitíssimo bem tratado (com amor) por ganadeiros, criadores, pastores e veterinários.
O meu amigo Eduardo Dias, não aficionado e cientista de mérito, defendia há pouco tempo, no “Diário Insular”, que “a cultura taurina na Terceira apurou a consciência ambiental”.
Há que perceber que o toiro é um animal diferente, sendo selecionado geneticamente para a bravura. Por isso, quando na praça é lidado e ferido, sente dor, mas não sofrimento, pois que através dessa dor ele liberta endorfinas. Muita gente não percebe isto, por falta de conhecimento e por excesso de sensibilidade. Na tourada à corda ninguém maltrata o animal e os terceirenses sentem por ele respeito, admiração e até lhe prestam culto. Já na tourada de praça, o “coitadinho do toiro que está a sangrar” virou síndrome de Walt Disney... Costumo dizer aos meus filhos que o toiro nasceu para aquilo, tal como a vaca nasceu para nos dar leite e bifes. E eles, sem qualquer tradição taurina, percebem perfeitamente.
Considero a tourada de praça uma arte efémera, e, por isso, é na arena que deve ser vista e apreciada. Aliás, nem sempre as corridas televisionadas prestam um bom serviço: aqueles planos aproximados do sangue a escorrer pelo lombo do toiro só servem para desviar atenções e desvirtuar a essência de uma lide. Mas é óbvio que quem não quer ver pode sempre mudar de canal. Convirá também lembrar que a tourada é um espetáculo que ao vivo é pago e realizado em recinto fechado, pelo que só lá vai quem quer.
Digo isto porque quando assumo a minha afición, sou logo apelidado de não gostar de animais. Ora, bem pelo contrário, sempre fui pela defesa dos mesmos, só que não confundo as coisas. É que do ponto de vista jurídico, os animais não teem direitos, nós é que temos deveres para com eles.
E, nesta matéria, a Terceira marca a diferença, porque possui uma tauromaquia sui generis: contrariamente ao que acontece noutras regiões portuguesas, nesta ilha a aficion está essencialmente centrada no toiro. Os terceirenses identificam-se com o toiro de lide. Mais do que o cartel, o que para este povo interessa é a bravura, a casta e a nobreza do animal, a energia da sua arrancada e a lealdade da sua investida. Por isso qualquer toureiro ou cavaleiro que à Terceira venha actuar sabe, de antemão, que não está perante turistas, mas gente com uma cultura do toiro. Que não restem dúvidas: a Terceira tem aficion taurina à escala mundial. Daí que os aplausos ou os apupos tenham sempre, nesta aficionada ilha, uma razão de ser.
Por último mas não menos importante, é incontornável a questão económica, pois que uma tourada é uma grande fonte de rendimento com efeito multiplicador. É dinheiro que fica na Terceira: os custos das corridas, o aluguer dos toiros, a comida, o cervejame... (Seria interessante saber-se quantas toneladas de cerveja se bebe, em média, durante uma tourada… Alguém quer fazer as contas por mim?).
Sim, a tourada constitui uma mola económica de extraordinária importância para a Terceira, “ilha toiresca” na expressão de Nemésio. Só falta mesmo que, num futuro próximo, a promovida “Rota do Toiro” venha a colher dividendos turísticos, o que até agora não aconteceu. A visita vale a pena pela espectacular beleza que oferece.
E depois vem o resto: o 5º toiro, o convívio, a diversão, o (re)encontro dos amigos, a dádiva, a partilha, os afectos, os namoricos… A propósito, consta que a Terceira será a ilha com menos consanguinidade dos Açores, precisamente por causa das touradas à corda. E isto porque, ao longo dos tempos, aquelas funcionaram sempre como espaço de/e pretexto para o namoro. Sou desse tempo. Elas, risonhas e melífluas, debruçadas em janelas, muros e balcões; eles, mandando “bocas” e lançando-lhes olhares dissimulados e furtivos... Era interessante um estudo sociológico que apurasse a (grande) percentagem de casamentos na Terceira que tiveram a sua génese nos namoricos da tourada à corda. Durante décadas, o namoro, no intervalo dessas touradas, serviu de prelúdio ao casamento. E como a tendência sempre foi para namorar e casar na freguesia alheia, resulta que os índices de consanguinidade na ilha de Jesus sejam diminutos.
Os que por aí se arvoram em proibicionistas da festa brava deveriam, ao menos, tentar perceber estes e outros argumentos.
Olé!
Victor Rui Dores
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